Em um sonho, me vi cego
Há pouco mais de uma semana sonhei que, ao abrir uma das janelas do meu apartamento, me deparava com uma paisagem simultaneamente linda e aterradora. De imediato, eu estava maravilhado com o conjunto e, só ao me atentar aos detalhes, que notei o real cenário “apocalíptico” que se formara, mas que não diminuía sua beleza.
A primeira observação me fez crer que uma nova chuva elevou o nível do córrego que flui logo à frente da janela. Havia uma nova enchente, mas em proporções mais impactantes do que havia observado no último período de chuvas, a ponto de se notar uma enorme cratera à margem mais próxima do prédio.
A água que inundava essa cratera era de um azul acinzentado bem claro, que me lembrou o céu em alguns fins de tarde, mas ao mesmo tempo era densa e turva, mas que não aparentava estar poluída.
Havia destruição, principalmente das árvores próximas. Elas jaziam secas, e mesmo a mata baixa, comum na área, não podia ser vista. Era como se um incêndio tivesse passado por ali, embora não houvesse vestígio de fogo ou fumaça. Na verdade, refletindo sobre isso depois, me parecia que as árvores já deviam estar mortas há um tempo, indicando uma estação mais longínqua.
Virei minha cabeça para o céu, e num ponto mais distante, já longe do vale e até mesmo do dos fluxos de água, uma imensa rocha flutuava acima dos montes, similar a um asteroide, e que parecia queimar em brasas através de “cursos” estreitos que pulsavam das suas crostas. Ele tinha uma aparência translúcida, de forma similar à Lua quando se mostra durante o dia.
Ainda em êxtase com aquilo tudo, corri em direção ao outro quarto, buscando por uma pessoa – desconhecida no “mundo real” – que lá estava e, quase gritando, perguntei:
– Você já viu a vista que você tem daqui?
Com a resposta negativa, abri as cortinas para que essa pessoa pudesse admirar o que eu tinha acabado de ver. Desta vez, a luz que vinha de fora me cegava, apesar dos esforços que fiz para tentar me acostumar novamente com a claridade.
Isso parecia não me incomodar, comentei sobre a luz ser tão forte que não conseguia enxergar enquanto ouvia a pessoa fazer elogios, maravilhada e entusiasmada com o que via, enquanto eu abaixava minha cabeça e esfregava os olhos em uma tentativa vã de voltar a ver.
Não lembro se acordei de imediato. O fato é que, passei a manhã seguinte intrigado com o sonho, refletindo sobre possíveis “significados” e tentando interpretá-lo.
Inicialmente, meu foco estava na “paisagem”, não só no contraste apocalíptico/belo, mas tentando interpretar cada detalhe. A água azulada da cratera – que nesse ponto parecia ter sido causada não pela enchente, mas por algum outro asteroide que pudesse ter caído ali -, o próprio asteroide; ou ao fato de ter achado aquilo magnificamente belo.
Ironicamente, não “via” o que talvez fosse o ponto principal daquele sonho. O fato de ter perdido a visão ao tentar mostrar para outra pessoa toda a magnitude do que havia visto, assim como a despreocupação com a qual reagi a esse fato, talvez confiante de que fosse voltar a enxergar que aquilo era algo temporário.
Segui minha rotina e fui realizar algumas tarefas, e só quando reservei um tempo para uma leitura, que mudei o “foco” da interpretação que tentava construir.
O livro que vinha lendo nos últimos dias era “Sidarta”, de Herman Hesse. Poderia tê-lo terminado na noite anterior, mas por algum motivo, tinha deixado umas poucas páginas restantes para aquele dia.
Essas páginas focavam no reencontro de Sidarta com o amigo de infância e companheiro durante boa parte de sua vida Govinda. Ao ser questionado sobre possíveis doutrinas ou ideias que o tivessem iluminado, Sidarta cita algumas de suas reflexões de forma genérica e destaca a seguinte ideia que teve para o amigo:
“A sabedoria não pode ser comunicada. A sabedoria que um sábio quiser transmitir sempre cheirará a tolice.”
Nesse momento parece que algo me “acordou” e comecei a refletir sobre a minha cegueira no sonho. Outras interpretações surgiram e gostaria de expor duas delas neste texto. Cheguei a uma delas sozinho, ainda no mesmo dia, enquanto a outra me surgiu – com ajuda – quase uma semana depois.
Antes de prosseguir com ambas, talvez deva ressaltar que essas “interpretações” não são de ordem “mística”, por assim dizer. Elas partem de uma crença que os sonhos são manifestações nossas – ou do que chamamos “inconsciente”, para os que preferem essa separação entre o ser e seus pensamentos -, mas que estão relacionadas com a nossa vida e com o que temos passado. Reações ao mundo externo sobre as quais não temos controle – sem entrar no mérito dos sonhos lúcidos nesse ponto.
Esse tipo de interpretação não é algo que faço com frequência, nem nos pensamentos e, muito menos, por escrito. E como ambas interpretações me levaram a escrever esse texto, chega a ser um pouco irônico.
A primeira interpretação foi basicamente uma “exemplificação” da ideia exposta por Sidarta que mencionei acima.
Em diversos momentos ao longo de nossa vida nos deparamos com situações, imagens, mensagens e até pessoas que parecem nos direcionar para um novo caminho, ou que simplesmente nos fazem enxergar algo de uma maneira diferente, como uma “luz” que parece nos guiar, principalmente em tempos mais difíceis.
Às vezes, esse tipo de mensagem é tão reconfortante e parece fazer tanto sentido para nós, que vem uma vontade de “gritar” para os outros, principalmente aqueles mais próximos e que passam por angústias similares, apontando para aquela “luz” que tanto nos foi reveladora. Assim eles poderiam compartilhar dessa transformação.
Muitas vezes me vi nessa ânsia de direcionar pessoas para essa luz. Me parecia tão óbvio simplesmente “abrir as cortinas” e tirar essas pessoas de uma escuridão que eu acreditava que elas estavam aprisionadas.
O que nunca me atentei foi que, ao fazer isso, eu mesmo me rendia a escuridão. Eu me cegava. Focava tanto na reação do outro e nos benefícios que queria que eles vissem, que não me permitia aproveitar da experiência em si.
“A sabedoria não pode ser comunicada”. Com essa interpretação, naquele momento, eu dava o sonho como um assunto “encerrado”. Parecia óbvio que devesse tentar compartilhar menos as experiências e vivências, e focar mais em absorver e entender as mensagens em si. Cada um tem sua própria caminhada, e não deveria ser eu o responsável por apontar caminhos ou atalhos.
No fundo, eu não acreditava nisso. Afinal, muito deixamos de compartilhar justamente pelo medo das reações. A indiferença, os julgamentos e todos os aspectos negativos que uma simples expressão pode gerar.
Quase uma semana depois, quando pela primeira vez compartilhei o sonho e minhas tentativas de interpretação – em uma sessão de psicoterapia, diga-se de passagem -, que a uma outra perspectiva surgiu.
Elas estão intimamente conectadas. A separação aqui é mais para expor o processo de raciocínio do que antagonizá-las.
Interpretar esse compartilhamento como motivo para cegueira, nada mais é do que uma supervalorização da reação do outro, colocando-a acima da própria experiência. Assim, ao invés de simplesmente aproveitá-las, fechamos nossos olhos ao que realmente importa. Deixamos os ouvidos atentos às respostas e isso acaba ditando o que acreditamos ser verdade.
É justamente essa supervalorização da reação que muitas vezes nos inibe de aproveitar uma experiência e da vontade de expressá-la pelo simples medo da “exposição”.
Às vezes não da exposição em si, mas do medo de se sentir exposto. Afinal, nos agarramos à imagem do que é esperado de nós e ocultamos nossas intenções de forma a não quebrar essas expectativas, rejeitando as mudanças naturais que ocorrem com o passar do tempo e cada vez mais inibindo nossas vontades.
Claro que existem inúmeros pontos a serem levados em consideração, e aqui exponho uma visão particular que, intencionalmente ou não, acaba por refletir um momento da minha vida. Ao me agarrar à “primeira interpretação”, eu fechei meus olhos para o que não queria enxergar. E foi só ao expressá-la que reaprendi a abri-los e me distanciar do medo da exposição e do receio dos julgamentos.
Quanto a dualidade da imagem inicial do sonho, é válido lembrar que, muitas vezes a destruição pode ser vista como um caminho para renovação. Mas isso já é uma outra história.
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